O Enquadramento: O Plano de Ordenamento da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Furnas
A paisagem dos Açores sofreu alterações profundas ao longo das últimas décadas como resultado da aposta económica na agropecuária e, mais concretamente, na produção de lacticínios. Neste contexto, vastas áreas das encostas da envolvente da lagoa das Furnas foram transformadas em pastagens, que foram sendo continuamente adubadas com estrumes e fertilizantes que, por escorrência, chegaram à lagoa. A consequente acumulação de nutrientes como azoto e fósforo na lagoa conduziu à proliferação de vida vegetal que revestiu as águas de um manto verde impedindo a sua oxigenação, um fenómeno denominado eutrofização, que resultou na morte da vida animal.
Perante um cenário de extrema degradação da Lagoa das Furnas foi preparado, entre 2000 e 2005, o Plano de Ordenamento da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Furnas (POBHLF), cujo grande objectivo era a recuperação ambiental e paisagística da Lagoa. O primeiro passo deste processo envolvia, necessariamente, a redução do influxo de nutrientes através da alteração do uso do solo dos terrenos com maior risco de escorrência.
Para o conseguir o Governo dos Açores adquiriu 300 hectares de terrenos agrícolas. A primeira fase da intervenção paisagística no âmbito do POBHLF, que durou dois anos, envolveu a remoção do gado e de várias toneladas de resíduos abandonados como pneus, plásticos e ferro velho. De seguida, iniciou-se a transformação da paisagem com múltiplos tipos de intervenções como a eliminação das espécies de plantas invasoras - ex.: silvados (Rubus spp.), conteira (Hedychium gardnerianum) e incenso (Pittosporum undulatum) - e substituição por flora nativa, a criação de áreas de floresta de produção, a consolidação de linhas de erosão, etc.
Foi neste contexto de reformulação da gestão do território da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Furnas que, em 2007, nasceu o projecto do Laboratório de Paisagem das Furnas, pioneiro não só a nível regional, mas também nacional. Perante a oportunidade única de recriar não apenas uma área mas toda uma paisagem, optou-se por uma inovadora abordagem experimental que permitisse testar diferentes possibilidades, numa procura contínua de modelos sustentáveis de gestão do território não só ao nível ecológico, mas também económico e social.
O LPF reaviva assim a tradição de experimentação paisagística iniciada por homens como José do Canto que, no séc. XIX, testaram na região o potencial de crescimento de diferentes espécies florestais para a produção de madeira.
A Implementação: As parcerias com agentes da Sociedade
O Laboratório de Paisagem das Furnas (LPF) é um projecto da Direção Regional do Ambiente dos Açores que está a ser implementado pela Azorina - Sociedade de Gestão Ambiental e Conservação da Natureza S.A. em colaboração com uma longa lista de entidades públicas e privadas. É a vasta rede de parcerias do LPF que permite explorar ao máximo as potencialidades da paisagem da Lagoa das Furnas, através da sua compartimentação com afectação das parcelas a diferentes projectos. Exemplos são:
- As Ilhas Verdes MIT - Biomassa Lenhosa: em parceria com algumas empresas, investigadores da Universidade dos Açores estão a avaliar o potencial de várias espécies arbóreas para produção de energia;
- Pólen das Furnas: em parceria com a Universidade do Porto e EDA, pretende determinar-se a composição da flora das Furnas previamente à colonização através da análise dos diferentes tipos de pólen presentes no solo;
- Ilhas Avifauna: com a colaboração da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves estão a ser instaladas ilhas que funcionem como habitat para as aves aquáticas e que, simultaneamente permitam a realização de atividades de Birdwatching, funcionando como novo atractivo turístico e uma fonte de rendimento alternativa para os habitantes locais, dinamizando a economia;
- Arboreto de Reforço: a parceria com o Instituto Florestal Europeu, várias universidades e centros de investigação por toda a Europa envolve a integração do arboreto nas Furnas numa rede europeia ao longo da costa atlântica continental que tem como objectivo o estudo da evolução das alterações climáticas e do seu impacto no sector florestal;
- Floresta SATA: com o apoio da SATA está a ser criado um ecossistema florestal cuja diversidade reflecte a paisagem dos diferentes destinos da companhia aérea.
Para além destes e de outros projectos individuais, o LPF beneficia ainda do apoio de diferentes grupos e organizações da comunidade das Furnas que, no âmbito de parceiras, participam em tarefas de intervenção paisagística, como é o caso dos militares da Zona Militar dos Açores, dos beneficiários do fundo de desemprego e do agrupamento de escuteiros das Furnas.
“Temos a colaboração da zona Militar dos Acções, com o envio de nove militares de 2ª a 5ª feira”, informa o Eng. Miguel Ferreira, Gestor de Projecto do LPF. “Desde Maio de 2012, contamos também com a participação de 24 trabalhadores que se encontram desempregados e que são, desta forma, ocupados no projecto durante o período em que recebem o subsídio de desemprego”.
Só assim é possível tornar realidade o ambicioso projecto do LPF com uma equipa que é formada apenas por dois técnicos superiores e cinco assistentes operacionais.
Os parceiros podem também contribuir para o projecto através do financiamento da aquisição de equipamentos e máquinas.
“A título de exemplo, o projecto actualmente dispõe de 4 viaturas, 3 das quais foram adquiridas através de parcerias e donativos (pick-up, pequeno tractor e UTV”, revela o Eng. Miguel Ferreira.
O orçamento anual do LPF é variável, e inclui uma componente de receitas próprias, associada por exemplo à venda de rolos de silagem produzidos nas pastagens ou de madeira resultante de cortes de áreas florestais restritas. Estas receitas contribuem de forma importante para a sustentabilidade económica do LPF como projecto a longo prazo.
Participação pública e atracção da população ao LPF
Para além das parecerias com grupos como escuteiros, escolas ou militares, a população local é incentivada a fazer parte do projecto participando em inúmeros eventos e actividades organizadas pelo LPF. O objectivo deste envolvimento da população local no projecto do LPF é que “transversalmente a toda a Sociedade haja um sentimento de pertença e carinho pelo projecto”, explica o Eng. Miguel Ferreira. E os frutos deste esforço de incluir a população no projecto já são visíveis: “Tem-se notado, ao longo dos anos, uma crescente e considerável participação pública em todo este processo”, revela o responsável.
Por outro lado, refere o Eng. Miguel Ferreira “Tem havido um esforço para atrair as pessoas para esta paisagem florestal multifuncional quer através de eventos, quer através da inovação e diversificação de actividades lúdicas, desportivas e económicas por toda a paisagem” porque “serão estas actividades económicas sustentáveis e a experimentação no LPF através de parcerias com universidades, centros de investigação e empresas que criarão emprego na paisagem para as novas gerações, para que estas possam gerir e perpetuar esta paisagem dinâmica e activa de uma forma verdadeiramente sustentável ecologica, economica, social, cultural e esteticamente, cumprindo com o estipulado pela Convenção Europeia da Paisagem”.
Os Resultados: Sucessos nas Dimensões Ecologico-Paisagística e Social
Os resultados do LPF medem-se em duas dimensões distintas: ecologico-paisagistica e social. A primeira diz respeito ao cumprimento do objectivo de recuperação ecologica e paisagística da degradada Lagoa das Furnas, enquanto a segunda diz respeito à criação de toda uma estrutura de suporte que garantirá a sua preservação, assegurando a sustentabilidade social e económica do projecto que é a melhor garantia da sua continuidade longo prazo.
Alguns dos resultados obtidos durante os primeiros cinco anos de implementação do projecto do LPF são assim:
A. Dimensão Ecologico-Paisagística
- Recuperação de 220 ha (160 ha públicos mais 60 ha privados) previamente ocupados por campos onde era praticada agricultura semi-intensiva, com eliminação da fertilização e dos dejectos de vaca que funcionam como estrume;
- Exportação de 6500 rolos de silagem, o equivalente à remoção de 4500 toneladas de ervas das pastagens e da sua carga nutritiva;
- Controlo e erradicação da flora invasora numa área de 160 ha de pastagens;
- Produção em viveiro de mais de 10.000 plantas herbáceas nativas e ameaçadas;
- Plantação de mais de 115.000 árvores e arbustos de 50 espécies;
- Reintrodução de seis espécies de plantas nativas extintas na área;
- Recuperação de massas de água e zonas húmidas;
- Controlo da erosão e plantação de flora nativa em linhas de erosão;
- Recuperação da vegetação ribeirinha com plantação de espécies nativas, algumas endémicas;
- Construção de seis bacias de retenção que evitam a entrada na lagoa de cerca de 20.000 metros cúbicos de sedimentos, anualmente.
B. Dimensão Social (cultura, participação pública, socio-economia, inovação, educação e investigação)
- Aproveitamento dos vimes colhidos nas margens ribeirinhas para a revitalização da tradição local da cestaria;
- Recuperação de pomares tradicionais e estabelecimento de novos pomares, alguns dos quais experimentais, com demonstração de técnicas agrícolas modernas;
- Construção do Centro de Monitorização e Investigação das Furnas que inclui um Centro de visitantes, que só em 2012 recebeu mais de 6000 visitantes que participaram em actividades de Educação Ambiental;
- Criação de novos trilhos e equipamentos de apoio aos praticantes de caminhadas;
- Criação de 10 postos de trabalho permanentes na comunidade local;
- Envolvimento de uma grande diversidade de grupos sociais organizados não só na implementação, mas também no planeamento do projecto através das parcerias.
Por outro lado, as experiências realizadas nas múltiplas parcelas experimentais do mosaico paisagístico que é o LPF, que foram levadas a cabo em parceria com universidade/centros de investigação, têm dado origem a apresentações em reuniões científicas.
“Não existem papers publicados pela equipa do projecto”, explica o Eng. Miguel Ferreira. “No entanto, funcionamos como facilitadores para que investigadores de universidades e centros de investigação possam instalar os seus ensaios e, consequentemente, possam publicar os resultados [que] têm sido apresentados em alguns congressos e seminários”.
O LPF: um campo experimental aberto a investigadores e estudantes
O LPF é, essencialmente, um campo experimental a grande escala e, como tal, está aberto a investigadores e estudantes para a realização de projectos de investigação. A equipa do projecto convida, por isso, os mestrandos/doutorandos que “queriam realizar as suas teses na área da Bacia Hidrográfica em assuntos de interesse” a “apresentar o seu plano de estudos e as suas propostas que resultem também num contributo para o projecto e comunidade local”. Embora não haja qualquer apoio financeiro por parte do LPF, é possível assegurar o “alojamento durante os períodos em que tiverem trabalho de campo”, refere o gestor do LPF.
O LPF como Modelo para outros Laboratórios de Paisagem
O LPF é uma iniciativa inédita pela sua escala e ambição constituindo, em virtude dos resultados já alcançados, um modelo que pode e deve ser replicado noutras áreas. Neste momento, há planos para criar um projecto semelhante noutra zona da ilha de São Miguel e até noutras ilhas do Arquipélago dos Açores:
O objectivo do LPF é “que as experiências de sucesso aqui testadas sirvam de exemplo para a gestão e alteração do uso do solo de outras áreas”, refere Miguel Ferreira. “Actualmente, estamos a estabelecer uma equipa para dar início a uma intervenção mais proactiva na gestão do Plano de Ordenamento da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Sete Cidades, e posteriormente até noutras ilhas, com a implementação dos Planos de Ordenamento das Lagoas existentes nas ilhas do Pico e Flores”.
O Futuro do projecto
O LPF é caracterizado por um grande dinamismo que, em boa parte, resulta das numerosas parcerias estabelecidas com grupos/organizações da sociedade, pelo que o futuro do projecto passa por investir na sua multiplicação:
“Gostaríamos de estabelecer novas parcerias que ajudassem na implementação do projecto e contribuíssem para uma colonização da paisagem”, explica Miguel Ferreira. “É importante que haja, cada vez mais, uma vivência da paisagem pelas pessoas, incluindo turistas, de forma a que essas actividades contribuam para a valorização e conservação da paisagem - o Ecoturismo é uma das prioridades”.
Por outro lado, no que diz respeito a novos projectos, Miguel Ferreira afirma que seria desejável “ expandir a intervenção a outros terrenos da Bacia Hidrográfica da Lagoa das Furnas através dos próprios proprietários dos terrenos, para que a Lagoa possa, efectivamente, apresentar resultados de melhoria da qualidade da água em pouco tempo”.
Outra ambição da equipa do LPF é a instalação de “um pequeno Centro de Recuperação/santuário de Animais Selvagens das Furnas, para poder reabilitar alguns dos animais, principalmente as aves de rapina (…) que têm sido alvo de um projecto elaborado por duas estagiárias universitárias”, explica o Gestor do LPF.
Planos futuros adicionais envolvem ainda a elaboração de “folhetos interpretativos para os trilhos, de forma a que quem nos visita fique com uma boa compreensão da paisagem”, refere Miguel Ferreira. “Estes folhetos interpretativos em papel ou formato digital poderiam financiar a manutenção dos próprios trilhos, e [permitir] abrir novos trilhos [já que] pretendemos criar uma verdadeira rede de trilhos multiusos com equipamentos de apoio”.
E o responsável do LPF conclui “Os planos e intenções são muitos e a níveis muito diferentes, pois este é um projecto vivo”.
NOTA: Os resultados alcançados pelo LPF já lhe valeram a atribuição do Prémio Nacional de Paisagem 2012 e a consequente nomeação para a 3ª Edição do Prémio de Paisagem do Conselho da Europa. Apesar de não ter recebido a distinção internacional, o comité responsável pela selecção reconheceu “grande valor” ao projecto, que foi convidado a participar na 14ª reunião do Concelho da Europa com o Workshop sobre a Implementação da Convenção Europeia da Paisagem.