A ARQUITETURA DOS IMPÉRIOS DO ESPÍRITO SANTO NO BRASIL MERIDIONAL: HERANÇA CULTURAL AÇORIANA
Fabiano Teixeira dos Santos
Introdução
A Festa do Divino Espírito Santo é, nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, a celebração religiosa mais representativa da contribuição dos colonizadores açorianos na sua formação histórica, quer pelo forte significado que ainda possui na maioria das comunidades onde se realiza, quer pelas suas semelhanças com as festividades realizadas nas ilhas do arquipélago português, onde é o mais importante evento do calendário.
Dentre os inúmeros símbolos que compõem este culto de forte caráter popular, destaca-se o “império”, construção em geral semelhante a uma pequena capela e que se constitui no centro do cerimonial em louvor ao Espírito Santo, como ainda acontece nos Açores.
No sul do Brasil, em boa parte das localidades em que ocorria desde o século XVIII, acabou sofrendo nos últimos oitenta anos, certamente em função da modernização do quotidiano e da religiosidade, uma gradual decadência e simplificação, inclusive com o abandono do uso dos impérios, dos quais restaram poucos exemplares.
Com o objetivo de identificar e analisar histórica e arquitetonicamente tanto as construções remanescentes como aquelas cuja existência só pudemos averiguar através da também escassa documentação escrita e iconográfica, este trabalho constitui-se em breve registro da presença dos impérios do Espírito Santo nesta região. Propõem-se assim, a partir da reunião de informações até então dispersas, destacar sua singularidade na arquitetura dos antigos núcleos coloniais, onde constituem patrimônio cultural insubstituível, testemunhas do relevante papel do contingente açoriano na construção da identidade cultural da porção meridional do território brasileiro.
1. O culto ao Espírito Santo e os impérios
Alvo de inúmeras pesquisas que buscam documentar o vasto universo de símbolos e rituais que compreende, o culto ao Espírito Santo costuma ser entendido, em função de sua índole sacro-profana, como a manifestação religiosa que melhor diz respeito à conjuntura sócio-cultural do mundo português e especialmente das comunidades açorianas ou que por estas foram influenciadas, a partir da emigração para o Brasil no século XVIII.
Instituído pela rainha Isabel de Aragão ainda na Idade Média, este culto desenvolveu-se consideravelmente nos Açores, chegando com os primeiros povoadores e transformando-se na mais importante festa popular, que através de irmandades, está presente em praticamente todos os aglomerados populacionais, fortalecendo os laços comunitários1.
Desconsiderando as características que assume em cada lugar, a Festa do Divino consiste fundamentalmente num ciclo de atividades que se inicia após a Páscoa, seguindo o calendário litúrgico da Igreja Católica, porém de certa forma independente e gozando de autonomia em relação a esta, culminando no Domingo de Pentecostes, data em que se celebra a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos. Antecedem à festa novenas, tríduos e a passagem da Bandeira do Divino, quando um grupo de foliões portando as insígnias visita as casas da comunidade a fim de arrecadar donativos para sua realização. Os três dias da festa ocorrem de sexta-feira a domingo e incluem procissões, missas, banquetes e a coroação de um casal de “imperadores” eleitos pela irmandade, que acompanhados de sua corte, conduzem o evento2.
Como centro de todo o cerimonial, figura o império, edifício semelhante à pequena ermida e que está por vezes próximo da igreja, junto a um largo que nos dias da festa é tomado por fiéis e barraquinhas enfeitadas. Constitui-se de sala retangular dotada de um altar e utilizada principalmente para a coroação do imperador, pagamento de promessas e para a veneração à coroa e ao cetro imperiais, objetos de grande significado espiritual para os devotos. Anexa ou nas imediações localiza-se a despensa ou copeira, que serve como depósito para os materiais e alimentos empregados nos festejos3.
Sua utilização, preservada nos Açores, foi praticamente abandonada no sul do Brasil, onde durante o século XIX havia sido amplamente difundida nas cidades e povoados cujo desenvolvimento esteve ligado à colonização açoriana.
Com a gradual decadência da própria Festa do Divino em boa parte dessas localidades, a partir do século XX, quase todos os impérios foram demolidos, passando as igrejas a assumirem o papel que desempenhavam no culto. Perderam-se com isso alguns dos melhores exemplares da tipologia construtiva que pode realmente ser considerada uma contribuição do açoriano à arquitetura das comunidades luso-brasileiras que ajudou a formar4, já que as construções civis e religiosas destes núcleos estão na verdade vinculadas à arquitetura tradicional portuguesa, aí adaptada5.
2. Impérios nos Açores e sua introdução no sul do Brasil
Expressando a forte religiosidade do ilhéu e especialmente sua devoção à Terceira Pessoa da Trindade, os impérios devem remontar aos anos que se seguiram à ocupação do arquipélago, a partir do século XV, quando o culto ao espírito Santo evoluiu em relação ao Continente e adquiriu características singulares, inclusive variando de ilha para ilha e com os próprios impérios adotando particularidades 6.
Nas ilhas de Santa Maria e São Miguel, especialmente na primeira, são em geral conhecidos como “teatros” ou “triatos” (esta segunda expressão é aceita como corruptela da primeira ou uma referência à Santíssima Trindade)7, certamente devido a sua utilização no cerimonial, que inclui a representação do coroamento do imperador da festa através de uma teatralização.
Acredita-se que sua origem formal e tipológica seja proveniente dos alpendres frontais comuns em primitivas ermidas de algumas regiões portuguesas, como Minho e Trás-os-Montes, e que nas ilhas foram adaptados para a referida encenação. Pesquisa publicada recentemente por Victor Alves faz considerações importantes sobre a origem destas construções, que ao que tudo indica, foram os primeiros espaços destinados ao culto do Espírito Santo e cuja gênese poderia estar no Templo de Salomão ou nos santuários romanos da Antigüidade8. De planta quadrada, geralmente coberta por telhado de quatro águas, apresentam-se fechados e com apenas um acesso frontal, ou abertos, lembrando claramente os alpendres dos quais teriam se originado. Seu emprego no Brasil parece ter sido raro, aparentemente ocorrendo apenas no estado de Santa Catarina, onde um último exemplar encontra-se junto ao largo da igreja da Lagoa da Conceição, em Florianópolis.
No restante do arquipélago predominam os “impérios-capela”, que como o nome sugere, são semelhantes a ermidas, cobertos por telhado de duas águas e tendo a fachada frontal encimada por frontão triangular. De reduzidas dimensões, são o modelo mais difundido no Faial e no Pico e também a tipologia que influenciou os impérios construídos, sobretudo, no litoral de Santa Catarina.
Já na Ilha Terceira, esta tipologia é bastante peculiar, apresentando sempre três vãos frontais, que consistem numa porta central ladeada por janelas e em geral elevada em relação ao nível da rua, à qual se tem acesso por escada fixa em alvenaria, ou desmontável, em madeira. Numa tentativa de interpretação, esta característica poderia ter influenciado os impérios construídos no Rio Grande do Sul, que em quase sua totalidade, apresentavam três vãos na fachada frontal, diferindo-se apenas pelo fato de todas as aberturas serem portas.
Os impérios da Terceira, como certamente nas demais ilhas, teriam evoluído de construções provisórias muito rudimentares, em madeira, montadas apenas para os dias de festa, e que a partir do final do século XVIII começaram a ser construídos em alvenaria de pedra. Conservando ao longo do século seguinte um aspecto austero e simples, no começo do século XX, após sucessivas reconstruções devido aos terremotos, passaram a apresentar em suas fachadas profusão de ornatos e pinturas, destacando-se em seus vistosos frontões a coroa ou a pomba alusivas ao Espírito Santo9.
Por fim, há os “impérios-casa”, presentes nas ilhas das Flores e do Corvo, e cuja denominação adotou-se pela forte semelhança que possuem com as habitações lineares comuns às vilas, das quais diferem apenas pelo baixo-relevo pintado ao meio da fachada, representando a coroa do Espírito Santo.
Levada aos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul pelos colonizadores açorianos, que chegaram no século XVIII atendendo à iniciativa da Coroa Portuguesa de formar núcleos de povoamento a fim de garantir o domínio sobre o território estratégico disputado com os espanhóis10, a Festa do Divino foi gradativamente assumindo o destaque que possuía nas ilhas.
Por sua vez, os impérios passaram a integrar os festejos na medida em que os povoados se desenvolviam e as irmandades se organizavam, construindo-os sempre próximos das igrejas paroquiais, nas praças centrais, que consistiam no mais importante espaço cívico e de convívio das comunidades11. Isso se deu a partir da primeira metade do século XIX, embora confrarias como as de Florianópolis12 e Santo Antônio da Patrulha13 já existissem desde o século anterior (1773 e 1778, respectivamente). Nestes núcleos, assumiram como no lugar de origem papel de referência da vida coletiva, até que no começo do século XX, o progresso e as mudanças na sociedade os condenaram ao abandono e quase total desaparecimento.
2.1 Em Santa Catarina
Em Santa Catarina, acredita-se que como nos Açores, os atuais impérios tenham substituído construções primitivas, em madeira, já que foram erguidos durante o século XIX, enquanto é sabido que as Festas do Espírito Santo acontecem desde a centúria anterior.
Diferindo-se dos demais, claramente ligados às tipologias existentes no arquipélago português, os impérios que existiram junto à catedral de Nossa Senhora do Desterro, na área central de Florianópolis, e na praça da cidade de São José consistiram provavelmente em adaptação dos modelos açorianos.
O império de Florianópolis, demolido no início do século XX quando da reforma da catedral, foi dos mais primitivos construídos em Santa Catarina. Dois possíveis indícios de sua antiguidade são o fato da atual rua Padre Miguelinho, que passa pelo lado da catedral onde estava situado, ter sido denominada desde tempos remotos como rua do Espírito Santo. Pesquisando a história das ruas centrais de Florianópolis, o professor Oswaldo Rodrigues Cabral descreve:
“Ficava, assim, a Matriz flanqueada por duas ruas, a que acabei de nomear (...) e a do Espírito Santo, (...) para a qual dava o Império do Espírito Santo.”14
Sua singularidade residia principalmente no fato de ter sido construído como anexo da matriz, contíguo à parede lateral da nave do templo e limitado na parte de trás por uma de suas capelas laterais. Tal fato reforça o conceito de que, diferentemente dos Açores, foi aqui o culto ao Espírito Santo totalmente ligado à estrutura eclesiástica, chegando mesmo a dividir paredes com esta. Característica interessante foi a de ter apresentado na fachada frontal não uma, mas duas portas, com vergas em arco abatido, encimadas por frontão triangular. Este, por sua vez, exibia no centro ornato com a pomba símbolo do Divino e pináculos sobre os cunhais, além de uma cruz ao alto. Foi desativado mesmo antes da reforma do templo, em 1909, quando a Irmandade do Divino foi transferida para junto do Asilo de Órfãs, na Praça Getúlio Vargas. Neste novo local a confraria ergueu ampla capela dedicada a seu orago, porém já configurada como uma igreja, sem vínculo com a tipologia dos impérios.
Em São José, o igualmente curioso império, demolido por volta de 1920, situava-se em meio ao casario de uma das laterais da praça central, posicionando-se perpendicularmente em relação à igreja matriz, que fica ao alto, num dos extremos da praça. Construção do século XIX possuía planta quadrada, complementada por pequeno anexo aos fundos e cobertura de quatro águas, o que o tornava semelhante aos “teatros”. No entanto, havia em sua fachada três vãos, sendo todos, portas de acesso, como nos impérios do Rio Grande do Sul, além de pequeno óculo circular acima da porta central. Outra peculiaridade era a presença de platibanda na fachada frontal, característica ímpar. Como o terreno em que se situava possuía suave declividade, foi construído elevado em relação à rua, porém sem escada permanente. Isso nos leva a crer que nos dias festivos, ocasião em que abria suas portas, adotava-se a mesma solução empregada em muitos impérios dos Açores, como nos da Ilha Terceira, onde há uma escada móvel em madeira, utilizada apenas durante a realização da festa.
Os impérios-capela foram os mais difundidos, sendo que na Ilha de Santa Catarina, as construções desta tipologia ainda existentes encontram-se nas antigas freguesias da Trindade (atual bairro de Florianópolis), Ribeirão da Ilha, Rio Vermelho e na Praia do Campeche, e no Continente situam-se em Garopaba e Imaruí.
O império da Trindade, hoje adaptado para uso da Universidade Federal de Santa Catarina, encontra-se bem conservado, mas desativado para fins religiosos, e embora tenha sofrido algumas adaptações para sua nova utilidade, percebe-se, através da distribuição de suas aberturas, que a frente destinava-se às celebrações religiosas e o fundo à despensa. Na fachada principal destaca-se a pomba símbolo do Espírito Santo, posicionada ao centro do frontão triangular que possui ainda uma cruz ao alto e pináculos nas laterais. No topo do frontão, abaixo da cruz, existe a data 1911, que deve indicar o ano em que a construção recebeu o aspecto que conserva até hoje.
No Ribeirão da Ilha, o império, um dos maiores encontrados no litoral catarinense, está implantado ao lado da igreja local, com frente para a praça, e lamentavelmente já teve seu interior e entorno descaracterizado por reformas e ampliações realizadas nos últimos anos. Como o império da Trindade, encontra-se elevado em relação à rua, tendo uma escada de acesso à porta da fachada frontal.
Em Garopaba, o império construído no século XIX e hoje desativado está localizado em esquina junto à praça da igreja matriz. A fachada frontal enquadrada por cunhais e encimada por uma cruz apresenta sobre a porta interessante óculo de formato triangular, talvez uma referência à Santíssima Trindade. Na fachada lateral voltada para a rua, existem duas aberturas seguindo este mesmo desenho, que se repete no vão do lado oposto. Neste lado, abre-se pequeno pátio murado que envolve um anexo com telhado de duas águas, perpendicular em relação à construção principal, e que deveria abrigar a despensa.
Já em Imaruí, o edifício, que também deve datar do século XIX, foi erguido numa esquina um pouco distante da praça principal, e após deixar de ser utilizado para o culto a que se destinava, passou a abrigar capela dedicada ao Senhor Bom Jesus dos Passos, ganhando com isso novo compartimento contíguo ao corpo principal. De pequenas proporções, porém arquitetonicamente expressivo, apresenta porta e janela em arco pleno e tem o aspecto de ermida reforçado pela cruz em metal existente no alto da fachada frontal, cujo frontão apresenta pináculos sobre os cunhais e óculo circular ao centro.
Dos primitivos “teatros”, há em Santa Catarina um último exemplar localizado na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e que embora não tenha sua data de origem conhecida, trata-se certamente de edifício bastante antigo. Voltado para a igreja local, tem a frente enquadrada por cunhais e apresentando um único vão que se estende por toda a fachada, com o acesso centralizado, configurando-se como uma porta ladeada por janelas. Possui notadamente semelhança com o teatro de Almagreira, na ilha de Santa Maria.
Outra construção que muito provavelmente esteve ligada a este partido foi a que existiu na antiga Vila de São Miguel, atual município de Biguaçu. Sua demolição aconteceu juntamente com boa parte das casas do povoado, arrasado para a construção da rodovia BR–101, há algumas décadas. Diante da ausência de documentos iconográficos, fundamentamos esta suposição em relato colhido sobre a vila, onde é destacada a presença do “teatro” ao lado da igreja, esta felizmente poupada quando da abertura da estrada. A respeito dele, Maria Simas Siqueira, moradora do lugar que acompanhou a chegada da rodovia e as mudanças pelas quais a comunidade passou, fez a seguinte descrição:
“No adro da igreja ficava a sineira, tinha dois sinos, um pequeno e um grande. Entre a sineira e o sobrado situava-se a casa dos padres. À direita da igreja, um pouco à frente, o “teatro”, uma sala onde se realizavam as festas do Divino Espírito Santo. Na frente do teatro havia um morro gramado que era cortado por uma ruazinha conhecida como “Rua de Cima (...) .”15
Por fim, ainda encontramos referências sobre os impérios nas freguesias de Canasvieiras e Santo Antônio de Lisboa, na Ilha de Santa Catarina, e em Laguna e na Enseada do Brito (hoje município de Palhoça), sendo que sobre os de Canasvieiras e da Enseada, sabe-se apenas haverem existido16.
Sobre o império de Santo Antônio de Lisboa, foi construído no século XIX onde hoje se encontra um necrotério, e em 1942, já em ruínas, foi demolido. Referência a seu respeito é fornecida pelo bispo de Curitiba, Dom José de Camargo Barros, que em visita à localidade em 1895, registrou no livro tombo da paróquia, seu patrimônio eclesiástico, constituído pela igreja matriz, um terreno, a residência do pároco e um “Teatro do Espírito Santo”17.
Sobre o de Laguna, embora nenhuma imagem tenha sido encontrada para melhor descrevê-lo, supõe-se, a partir da citação de Saul Ulysséa, haver sido edifício de certo porte, demolido no final do século XIX. Situava-se ao lado do templo principal da cidade, voltado para a praça Marechal Floriano:
“Ao lado direito da Matriz, um cemitério, cercado de táboas sobre um alicerce de pouco menos de um metro de altura, que ía até o edifício da Irmandade do Divino Espírito Santo, denominado“Império”, de boa construção, onde é hoje a casa paroquial.”18
A atual rua 15 de novembro, que margeia a praça Marechal Floriano e vai até a Lagoa de Santo Antônio, tem seu começo quase em frente ao terreno onde se encontrava o referido edifício, sendo por isso em seus primórdios denominada de “rua do Império”. Esse nome perdurou até 1855 ou 1858, quando passou a se chamar “rua do Teatro”, em função da casa de espetáculos construída na esquina com a rua Voluntário Carpes19.
2.2 No Rio Grande do Sul
Analisando as semelhanças e particularidades dos impérios que existiram no Rio Grande do Sul com as construções encontradas nos Açores, é provável que tenha ocorrido uma evolução dos “impérios-capela”, dado o fato de suas dimensões serem em geral muito maiores que as dos exemplares existentes no arquipélago português e em Santa Catarina, além de sempre possuírem três vãos na fachada frontal. Esta última característica pode ter sido herdada diretamente dos impérios da Ilha Terceira, cujos exemplares mais antigos, datados de fins do século XVIII e meados do século XIX, muito se assemelham aos do Rio Grande do Sul. No entanto, enquanto nos edifícios terceirenses as três aberturas consistem em uma porta central ladeada por janelas, nestes eram todas portas, sendo por vezes a porta central maior, solução ligada à estética, de forma a destacar o acesso principal, e também encontrada em igrejas. A fachada era encimada por um frontão triangular, ao centro do qual poderia ou não aparecer um pequeno óculo ou ornato alusivo ao Espírito Santo.
Este modelo existiu pelo menos em Porto Alegre, Viamão, Gravataí, Taquari, Cachoeira do Sul, São Jerônimo e Santa Maria, cidades em que somente o registro fotográfico e alguns poucos relatos salvaram do esquecimento a memória destas construções. Após a recente demolição do belo império de Taquari, que estava situado na praça principal da cidade, fronteiro à igreja matriz, o último exemplar, em Triunfo, também na praça da igreja, após anos de abandono sofreu o desabamento de seu telhado, correndo o risco de também desaparecer.
Em Porto Alegre, o primeiro império de que se tem notícia foi inaugurado em 1821, ao lado da velha catedral de Nossa Senhora da Madre de Deus. Provável precursor do modelo que acabou se espalhando pelas demais vilas da província, o singelo edifício aparece de frente, com suas três portas de dimensões iguais e um óculo ao centro do frontão triangular em fotografia de 1880, tomada da rua ao lado do Tribunal de Justiça. Aí permaneceu até 1882, quando foi demolido para dar lugar a uma nova construção, mais ampla e em estilo neo-gótico, cujo principal elemento era a torre pontiaguda que se projetava ao centro do telhado. Concluído em maio de 1883, por ocasião da Festa do Divino, esse segundo império tornou-se peculiar por suas características arquitetônicas, resultado do trabalho conjunto do mestre-construtor Antônio do Canto e do cenógrafo Orestes Coliva. O porte e a grande semelhança com uma capela levaram o jornal “O Mercantil” a referir-se da seguinte forma sobre ele:
“O templo está primorosamente acabado com gosto e solidez. Já tivemos ocasião de dizer que a pintura é devida ao inteligente cenógrafo Coliva que mais uma vez confirma sua reputação de notável artista. A construção do templo foi devida aos esforços do Dr. Domingos dos Santos que, a despeito das dificuldades que os inimigos lhe opuseram, levou a bom termo sua iniciativa.”20
Sua demolição ocorreu juntamente com a do velho templo, em 1923, para dar lugar à atual catedral. Em 1932 foi inaugurada na esquina das avenidas José Bonifácio com Osvaldo Aranha a capela do Espírito Santo, que, como no edifício congênere construído em Florianópolis, já não possui relação com a tipologia dos impérios.
Primitivos também foram os impérios de Viamão, Caçapava do Sul e Gravataí, sendo que os dois primeiros já apareciam em plantas urbanas elaboradas no início da Revolução Farroupilha (1835-1845). Embora o edifício de Caçapava não pôde ter seu aspecto descrito em função da ausência de maiores informações, o de Viamão, que estava situado ao lado da matriz de Nossa Senhora da Conceição, foi registrado em algumas fotografias do início do século XX. Elevado em relação à rua, tinha acesso através de uma escada que se estendia ao longo das três portas de arcos plenos da fachada principal, em composição que lembrava muito o império de Faial da Terra, na ilha de São Miguel. Foi demolido em 1928, após ruir devido a um vendaval21. Na cidade de Gravataí, o império, também situado ao lado da igreja paroquial, era muito semelhante ao primitivo edifício congênere que existiu junto à catedral de Porto Alegre e tão antigo quanto este. Foi construído entre 1825 e 1830, quando mudou o nome da atual avenida José Loureiro da Silva, à sua frente, de rua da Ferraria para rua do Império, sendo derrubado por volta de 1930 para dar lugar a uma escola22.
Em alguns exemplares de três portas frontais, as dimensões foram tão avantajadas quanto de uma igreja. O império de Cachoeira do Sul foi certamente o maior construído no Brasil, tendo recebido destaque na narrativa de Luiz Alves Leite de Oliveira Bello. Este viajante, ao percorrer o interior do Rio Grande do Sul, assim o descreve em seu Diário de Uma Viagem no Interior da Província de São Pedro em 1855:
“O império do Divino Espírito Santo, que está próximo da Igreja, é um belo edifício no seu gênero, que depois de concluído será o maior e melhor da Província.”23
A edificação, demolida em começos do século passado, possuía três portas de sobre-vergas retas com primoroso enquadramento, encimadas por frontão triangular com uma coroa ao alto e pináculos nas laterais. De cada lado da construção, uma porta dava acesso provavelmente às despensas, ficando a fachada principal com cinco vãos ao todo.
Em Santa Maria, o império foi construído entre 1882 e 1883, na esquina da rua dos Andradas com a avenida Rio Branco, onde permaneceu até sua demolição, em 1937. Não fugindo à regra, estava situado nas imediações da igreja paroquial, tendo inclusive abrigado os fiéis como matriz provisória até a conclusão das obras da catedral da cidade, em 190924. Suas três portas frontais com arcos ogivais provavelmente foram resultado do ecletismo experimentado pela arquitetura brasileira neste período, e que especialmente nesta região, sofreu influência de uma estética de gosto neo-gótico introduzida pelo numeroso contingente de imigrantes alemães e italianos aí estabelecidos.
Os impérios-capela de menores dimensões e com uma só porta ocorreram na Freguesia do Menino Deus, atual bairro de mesmo nome, em Porto Alegre, e na cidade de Osório. Consistiam na característica edificação de planta retangular e cobertura de duas águas, onde na fachada principal a única porta com verga em arco pleno era encimada por frontão triangular. No edifício do bairro Menino Deus, fotografias antigas mostram aos fundos do império um pequeno pátio murado que provavelmente dava acesso à copeira, situada atrás do altar, sob o mesmo telhado.
Os impérios do Divino existiram ainda nas cidades de Santo Antônio da Patrulha25, Rio Pardo26, Santo Amaro (atual município de General Câmara)27 e São Gabriel, sendo que nesta última, deu à pequena rua que fazia esquina com a praça da matriz, onde se situava, o nome de “Beco do Império”28. Porém, a pobreza dos relatos e a ausência de material iconográfico impossibilitaram a reconstituição das características destes edifícios, sendo necessário um aprofundamento da pesquisa a fim de serem apuradas novas informações a seu respeito, e mesmo, sua ocorrência em outras localidades.
Notas
1 OS Impérios da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: BLU Edições, 2002, p. 3. A importância social da Festa do Divino é destacada pela antropóloga Helena Ormonde, que ao falar sobre os impérios da ilha Terceira, nos Açores, afirma que “Com algumas variações, este cerimonial ocorre ciclicamente em toda a ilha, reforçando deste modo, em associação ao sagrado, posições sociais, sentidos e sentimentos de comunidade.
2 JACHEMET, Célia Silva. As festas do Espírito Santo em Portugal – Açores e sua transmigração para o Brasil e Rio Grande do Sul. In: BARROSO, Vera Lucia Maciel (org.). Presença açoriana em Santo Antônio da Patrulha e no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Edições EST, 1993.
3 MARTINS, Francisco Ernesto de Oliveira. Em louvor do Divino Espírito Santo – Fotomemória. Maia: Região Antónoma dos Açores/Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983.
4 VEIGA, Eliane Veras da. Mitos e Realidades das Arquiteturas Açoriana e Colonial Catarinense. In: REVISTA do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina, 3aFase 20, 2001.
5 WEIMER, Günter. A arquitetura popular dos Açores e o Rio Grande do Sul. In: BEMFICA, Coralia Ramos e outros (org.). Santo Antônio da Patrulha: re-conhecendo sua história. Porto Alegre: Edições EST, 2000, p. 60. Sobre a presença dos impérios no sul do Brasil como uma arquitetura de origem açoriana e seu desaparecimento, comenta o arquiteto Günter Weimer: “Talvez a influência mais marcante tenha sido a da documentação – muito rara, por sinal – dos assim chamados impérios. Dizemos documentos históricos posto que os mesmos foram desaparecendo no mais completo desleixo e descaso”.
6 ARQUITECTURA Popular dos Açores. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, 1998.
7 ADAMS, Betina; ARAÚJO, Suzane Albers. Notas para o estudo da contribuição portuguesa na ocupação do território. In: FARIAS, Vilson Francisco de. De Portugal ao Sul do Brasil – 500 Anos – História, Cultura e Turismo. Florianópolis: ed. Do autor, 2001, p. 693.
8 ALVES, Victor. The “Theatros” of the Holy Spirit. In: FUNK, Gabriela (org.). Azorean popular culture today. Ponta Delgada: Universidade dos Açores, 2003.
9 FERNANDES, José Manoel. Angra do Heroísmo. Lisboa: Editorial Presença, 1989, p. 68.
10 SOUZA, Sara Regina Silveira de. Açorianos em Santa Catarina: povoamento e herança cultural. In: CADERNOS da Cultura Catarinense. Florianópolis: Edição da Fundação Catarinense de Cultura – FCC, Ano I, N 1, outubro a dezembro de 1984, p. 7/9.
11 RHODEN, Luiz Fernando. Urbanismo no Rio Grande do Sul: origens e evolução. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. Ao analisar o desenvolvimento das cidades de base açoriana no Rio Grande do Sul, Luiz Fernando Rhoden afirma que nestas localidades, a presença da cultura açoriana deixou como marca significativa no contexto urbano, a existência dos “impérios”, edificações localizadas próximas às igrejas paroquiais e que eram o centro das festas do Espírito Santo.
12 CLETISON, Joi. Festas do Espírito Santo. In: www.nea.ufsc.br/artigos.
13 BEMFICA, op. cit. p. 404.
14 CABRAL, Oswaldo Rodrigues. Nossa Senhora do Desterro – Notícia/1. Florianópolis: Lunardelli, 1979, p. 138.
15 SIQUEIRA, Maria Simas. Revivendo o São Miguel de outrora. In: COUTINHO, Ana Lúcia (org.). São Miguel da “Terra Firme”: 250 Anos 1747 – 1997. Biguaçu: EDEME, 1997, p. 152.
16 FARIAS, op. cit. p. 694.
17 SOARES, Iaponan (org.). Santo Antônio de Lisboa – vida e memória. Florianópolis: Fundação Franklin Cascaes, 1993, p. 104.
18 ULYSSÉA, Saul. A Laguna de 1880. 1943, p. 57.
19 ULYSSÉA, op. cit. p. 57.
20 DAMASCENO, Athos. Artes Plásticas no Rio Grande do Sul 1755 – 1900 (Contribuição para o estudo do processo cultural sul-rio-grandense). Porto Alegre: Globo, 1971, p. 43.
21 SANTOS, Adonis dos. Viamão. Porto Alegre: Gráfica Rogilma, s/d, p. 30/91.
22 ROSA, Jorge. História de Gravataí. Gravataí: Prefeitura Municipal, 1987.
23 DAMASCENO, op. cit. p.47.
24 MARCHIORI, José Newton Cardoso; NOAL FILHO, Valter Antonio (org.). Santa Maria – relatos e impressões de viagem. Santa Maria: Editora da UFSM, 1997.
25 BEMFICA, op. cit. p. 282.
26 RIO Pardo: Festa do Divino retoma a tradição açoriana. Jornal Correio do Povo, Porto Alegre, 08 de junho de 2003.
27 RODRIGUES, Francisco Pereira. Uma página da história rio-grandense: Santo Amaro – General Câmara. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1989, p. 53.
28 SILVA, Aristóteles Vaz de Carvalho e. São Gabriel na História. Porto Alegre: CITAL, 1963, p. 65.