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FRANCO ALVES - O Conto de Lá para Cá

 

O conto de lá pra cá

 

Berros. Euforia. Comemoração. Um zunido vinha lá de cima da embarcação. O homem que estava cabisbaixo ergueu a face na direção do teto. Algumas pessoas ao seu lado já tinham se dado conta. Ele levantou e foi ver o que era e, em cada degrau do navio,  avançava e a certeza tomava conta. Mas seus olhos, seus olhos pretos, tinham que ver, que confirmar. Ele tinha fé, porém, depois de meses naquele sobe e desce de ondas, queria rever a terra. A nova terra.

        Uns homens giravam os gorros, homens pulavam. Tripulantes quase urravam. Correu, desviou de sua frente à visão das pessoas. Segurou na borda do navio. Era ela, a terra, a tal Capitania de Santa Catarina. Ele sorriu. E sua alma e seu corpo todo entraram  em sintonia com o restante das pessoas que presenciavam aquela faixa de terra que agora tomava conta do horizonte à frente. E aos poucos a embarcação chegava perto. Revelava aquelas terras que por tempos eram apenas esboços de um sonho, feixe de esperança naquele rapaz.

        À medida que o navio aproximava-se da terra, um certo silêncio reinava entre todos. Um silêncio respeitoso, sóbrio e admirado. O capitão guiava o navio para um local que parecia uma baía. Natureza por todos os lados. A impressão que teve era de que a praia não chegava nunca. E percebeu que quanto mais adiante, mais água surgia. Como se agora penetrassem num rio entre verde nas duas margens. Então se lembrou o rapaz. A ilha. Era uma ilha. De uma ilha ele saíra e noutra estava chegando. De repente se lembrou da Ilha do Faial, dos Açores. Soluçou de saudade e depois soluçou de alegria.

A madeira da proa do navio rasgava lentamente a calmaria daquelas águas. Ele, assim como outros homens, estava de pé. Venciam o cansaço para enxergar a terra. Algumas mães cuidavam de seus filhos dentro do navio, outros levantaram. Mas o jovem rapaz não, pois não dormira há horas. Crianças se embelezavam com o que viam. Esquecera até da fome que sentia. Aquele azul estava sendo interrompido por duas embarcações; a água sentiu a presença como se toda aquela vasta natureza esperassem eles ali. A sua vinha na frente e ele não era tripulante, nem tampouco capitão, mas um passageiro imigrante.

        De certa forma valera a pena esperar tanto. A jornada parecia ter chegado ao fim, no fundo ele sabia que não, que este era o começo, o recomeço. Porém o som da vitória estava claro quando ele se lembrava de sua vida nos Açores, pelo menos nos últimos anos.

Então era ali a tão esperada terra brasileira. A embarcação transpassava por uma longa faixa de água que separava a ilha do resto da terra. Não era uma ilha como as nossas, era perto do continente, era do lado. Mas eles estavam certos. Uma mata, verde, exuberante e grandiosa. Montanhas dos dois lados que pareciam brotar da própria água e de se duvidar que homem algum subiu nelas de tão verde e pura que eram suas matas.

        O sonho estava concreto. A viagem, a longa viagem, pelo menos até aqui. Valera a pena, e, se não fosse assim, teria que fazer valer. O sol, tímido, refletia na água, clara e azul, mas ela exigia respeito, aquelas águas que separavam a ilha do resto da terra não pareciam mais um imenso rio, mas sim um mar que já era bem dono do local onde estava. Ele sentiu que devia respeitá-lo.

Nem tampouco quisesse lembrar. A terra era amada, foi amada. Mas já não era possível viver naquelas condições. Era uma mistura de saudade e alívio, inexplicável. Não sabia o que estava por vir, sabia sim de tudo que haviam lhe falado e prometido. Durante os mais de noventa dias de travessia pelo Oceano Atlântico ele sonhara - nem sempre sonhara - e muitas vezes eram pesadelos.

A embarcação já estava numa parte onde se via terra dos dois lados e numa longa faixa, ele fora até a ponta, abaixou para ver as marolas que o navio fazia e, sem notar, seu passado tomava conta dele. Lembrava-se de sua freguesia na ilha do Faial, onde nascera, crescera e da terra onde tirava seu sustento. Este mesmo que nos últimos anos estava escasso e cada vez mais raro. O trigo não dava mais por lá, dava, até dava. Mas pouco. Muito pouco se comparado com as colheitas que havia no tempo da sua infância. Quando menino via sacas de trigo saindo para a cidade. Seu pai dizia que ia pra Lisboa. Ele nunca fora para Lisboa. Pra ele, ainda hoje era uma cidade onde toda a gente só comia trigo, fazia muita coisa com trigo. De repente, o homem, seduzido pelas ondas, riu. Voltou para o navio, deixou o trigo do Faial em seus pensamentos, olhou a terra em sua volta. Crianças brincavam ao seu redor.

Agora já não havia tanta regra no navio. Já estavam chegando, podia caminhar com os tripulantes. A lembrança o fez cansar. E num instante ele saiu do ritmo de toda a euforia que tomava conta do navio. Procurou um lugar para sentar. Caminhou até o mastro e sentou ao pé dele. Olhou pra cima. As velas tremulavam devagar, brancas, sujas, com suas cruzes de malta vermelhas. Pássaros passaram ao alto e chamaram sua atenção. Qual seria o nome daquela ave? Essas pequenas coisas agora prendiam a atenção dele. Durante a viagem toda estas cenas ganhavam muita atenção por seus olhos, talvez pelo longo tempo no mar, talvez por falta de outras paisagens para ver. Mas essas coisas agora eram importantes. Encostou a cabeça e um sono leve tomou conta dele. Sua alma estava tranqüila, mesmo por toda alegria que contagiava ao seu redor, mesmo chegando ao lugar de seu futuro. Talvez o sono fora uma recompensa, uma espera para que ele pudesse descansar plenamente.

O sonho veio logo...os pés cansados, giravam, giravam ao ar livre; as mãos batiam ora em cima, girava-se a roda, as mãos batiam em baixo, os pares. O pai do ladrão... Risadas, a roda girava pra outro lado, as violas entoavam, as senhoras cantavam. Eu fui a terra do Bravo... Vinhos, pés batiam no chão giravam, saudade.

De repente o jovem fora acordado por uma criança que resvalou em suas pernas esticadas. Acordou em susto. Não estava mais num baile de roda, sentiu algo estranho. Saudade novamente, das vezes que a lida no moio do trigo cansava e no findar da tarde dançava-se tendo apenas o céu de teto. As mãos grossas da enxada fizeram força e o homem se levantou. Fora apenas um cochilo pelo que se pôde perceber. O navio estava parado e outro vinha logo atrás. Ele buscou se informar. Foram na ilha de Nossa Senhora do Desterro saber se estava tudo pronto; estava quase; um tal senhor da capitania estava esperando por eles.

Ele desceu o porão do navio. Estava escuro, mas alguns feixes de luz penetravam as janelas. Mulheres junto aos filhos. Caminhava devagar e via as pessoas nos cantos, algumas melhor que as outras. Notou num canto uma mulher que, aos prantos, era consolada por outra. Apesar de terem finalmente chegado ele entendera porquê as lágrimas. As doenças foram muitas na viagem, gente morreu, bastante gente. Jogavam-se os corpos no mar para não passar a enfermidade pros outros, mas mesmo assim uma enfermidade maior tomava conta das viúvas. Agora teria que buscar com maior força ainda a persistência, sozinha doutro lado do mar sua força deveria dobrar. Seu marido estava junto na sua alma.

Continuou andando, desviou de pessoas que levantavam para ver a terra. Estavam todos ansiosos e esperançosos acima de tudo. Ele sorriu ao ver uma mãe ajeitar seu filho. Ele era um dos poucos jovens solteiros que conseguira o alistamento para vir para o Brasil, para construir uma nova vida. Ele sonhava com isso, nunca soube bem ao certo, nem poderia imaginar, mas era jovem e, apesar de crescer numa humildade extrema, queria mais espaço. Não queria mais viver cercado por água de todos os lados, não como no Faial, longe do resto do continente. Descobrira na viagem que Desterro também era uma ilha, mas não bem o que ele esperava: era um pedaço da terra firme solto no mar. O rapaz perdia-se em idéias novas que tomavam conta dele. Pôde ouvir murmúrios de mulheres que rezavam para o divino. Fez o sinal da cruz e quis ver a luz do sol novamente.

No convés da embarcação as pessoas conversavam ainda mais. Rodas de homens conversavam por todos os lados. Notícias diziam que deviam esperar mais tempo no navio. Ele procurou se informar e descobriu que queriam ter certeza de que não havia mais imigrantes com doenças perigosas para os moradores dali. Ouvira um homem do comando reclamar; dizia que tinha um senhor que sabia da saúde de todos a bordo e nem da quarentena iriam precisar.

O homem não opinou, apenas esperava. Parou de frente para a terra, a luz batia nela e distribuía diversos tons de verde. Ele via algumas praias ao longe. Começou a se imaginar dentro daquele lugar. Recomeçar do nada, do zero, achar mulher, casar, plantar, ter filhos e amigos. Parece que a Coroa ia dar um espaço até pra igreja. Imaginou quando iria receber os instrumentos, as facas, gado, cavalo, semente, imaginou sua casa. A esposa que ainda não tinha, diziam que ali dava trigo, dava pra ter moenda? Esperava que sim. Olhou pra trás e viu os homens conversando sobre o desembarque, não quis prestar atenção. Estava melhor em seus pensamentos, seu futuro. Quis desembarcar logo.

 Deus. Lembrou de Deus e agradeceu pela viagem cumprida. Apesar de nem sempre acreditar que a completaria. Todas as tormentas, o frio, as ondas enormes. Nem em seus piores pesadelos de criança imaginou que passaria por isso e que ainda sim se salvaria. À noite em claro ouvindo as crianças chorando ao fundo. Berros que corriam da polpa à proa acordando os tripulantes cansados. O navio não se mostrava forte como alguns que estavam ancorados no mar de Angra do Heroísmo. As idéias do homem foram interrompidas por um cumprimento de uma voz amiga. Era um imigrante também. Apresentaram-se. Ele gostava de ficar sozinho, mas naquelas horas era necessária uma companhia. Parecia que a necessidade de conversar atingira a todos para disfarçar o nervosismo e a ansiedade. Com ele não fora diferente.

O homem descobriu que seu colega era da Ilha Terceira. Da freguesia das Doze Ribeiras. Na cultura da vinha, um tremor de terra tinha destruído toda sua casa. Estragado uma safra e danificou o solo. A fome veio e a tristeza também. Até que chegou a notícia da viagem, o alistamento e a esperança renasceram. Não era uma história muito diferente da sua. Ele percebeu que, entre todos os homens, mulheres e crianças daquele barco tinham muito mais coisas em comum do que imaginava. Eram sim de um mesmo lugar. Porém, um espírito, uma força. O rapaz não soube ao certo na hora. Talvez seria a coragem açoriana. Ou quem sabe a fé. Poderia ser a origem, seja lá o que fosse, esta força os unia ainda mais, sem eles mesmos sentirem. Um sentimento em comum.

O rapaz conversou mais um pouco. Depois saiu. Procurava algo para fazer, pois não queria preocupar-se com o momento de atracar em terra firme. Sentiu fome. Dirigiu-se até uma parte mais baixa do convés. Havia pães e água ali. Não sobrara muito do suprimento da viagem, na verdade aquilo era apenas o restante. Pegou um pão de trigo sovado e um pouco de água que os homens haviam trazido de Desterro. Sentou-se num canto e comeu. Deu um gole na água, então era aquela a água que se bebia ali. Na verdade o gosto não era diferente, porém qualquer coisa o fazia pensar naquele lugar novo. E muita coisa o fazia lembrar de seu passado.

A medida em que mastigava o pão um pouco duro ele lembrava de sua mãe. Quando novo, comia dos seus pães quentes e inexplicáveis. Da comida na matança do porco. Uma dor invadiu seu peito ao pensar na sua mãe, mulher forte, viúva ainda cedo, criou os filhos com fé, educação e trabalho. Sentiu-se como uma criança com saudade da mãe. Queria que estivesse ali, com ele. Mas não era possível, já era uma senhora para enfrentar uma viagem dessas e mesmo que fosse, não seria possível se alistar.

Depois da rápida refeição ele retornou para cima movido pela ansiedade que parecia ter tornada dona de seu corpo. Quando lá chegou soube novidades vindas da terra: atracariam logo. Estavam apenas esperando os últimos preparativos na ilha. Parecia que um tal de Silva Paes iria recepcioná-los. Era o governador da província. Diante disto, ele sentiu-se honrado e importante. Então se lembrou de todas as promessas que a Coroa portuguesa lhe havia feito. As terras, os animais, sementes, armas e diversos utensílios, uma lista que ele levava decorada na cabeça. Ficou pensando se era realmente verdade que receberiam tudo isso. Será que naquelas terras desoladas já estariam estes presentes? Sim, pois não viu nada de facas, nem enxadas, nem nada durante a viagem. Concluiu que aquela era uma terra boa como de fato os rumores indicavam. Começou a visualizar tudo que receberia. Por um segundo viu sua futura morada. De fato, ele absorvera com real precisão todo o que a coroa lhe prometeu. Como se este juramento fosse um incentivo a mais para pessoas como ele viajarem.

        Nunca havia pensado nisso e talvez nem fosse preciso. Mas lá nos Açores era grande o empenho dos portugueses para conseguir voluntários. O sonho e a esperança não o deixavam pensar em nada. Aceitou, trouxe a raça e a coragem, e veio. Algo de maior ainda estava por trás, ele podia sentir. Um plano pra colonizar estas novas terras portuguesas ou mesmo alegrar seu povo, ele não sabia ao certo. E isto não mudava em nada para ele.

Depois de saber que a demora fora prolongada. Não teve outra escolha: haveria de esperar. Sem sono, nem fome. Escorou numa madeira e deixou-se guiar pela paisagem nova. Seu olhar descobria cada curva. Cada pedaço de terra. Cada tom de verde que mudava de cor. O dia que passava. Seus olhos contornavam a pequena faixa de areia na praia. Iam longe. Ate perder de vista em terras cinzas lá embaixo. Fora pra o outro lado. No continente. Notou morros mais altos. Pareciam irmãos. Mas um, um era diferente. Olhou-o, pensou. Solitário, pontiagudo, como o... Pico! Sorriu, as semelhanças de cá e de lá eram maiores do que imaginava. Este morro o fez lembrar de algumas tardes preguiçosas que passava deitado, olhando a Ilha do Pico, bem pertinho do Faial. Grande, sozinho. Ele nunca havia ido lá. Mas sempre o via, com nuvens na ponta. Como um grande morro que saísse direto do mar. O Pico.

Resolveu caminhar sobre o barco. Olhava para a água e podia ver pequenos barcos que iam da ilha para o navio. Tentou prender a visão na praia pra encontrar alguém, a recepção, a gente daquela ilha, ou o próprio Silva Paes. Não reconheceu nada, apenas  vultos na praia. Mas sua mente não prestava mais atenção. Não estava mais ali. Queria sair daquele navio. Pisar em terra firme. Molhar os pés naquelas águas que o convidava. Olhava as crianças brincando. Homens ajeitando suas coisas para desembarcar. Tripulantes quase nervosos se preparando, como que para algo que esperara muito. E de fato fora assim. O homem sentiu que seria breve. Olhou para cima e até as velas pareciam querer se agitar novamente. Então percebeu que já não deviam mais estar ali. Como se todos do barco, o vento o mar e a natureza o convidassem para descer. Por impulso ele desceu para pegar suas coisas.

Não eram muitas as suas coisas: uma trouxa com duas camisas de linho, o chapéu de palha de trigo, uma cabaça, a calça que ele estava usando e um par de galochas. Arrumou tudo e subiu.

A embarcação estava parada. Diversas pessoas estavam prontas para ir. Uma frota de pequenos barcos vinha da praia. Alguns homens botavam as regras no lugar. Pediam calma. O rapaz esperava, ao fundo da multidão e, apesar de também estar com pressa, sabia que no fundo de sua alma um pedacinho daquela terra já era sua. Um homem, com um traje que o destacava dentre todos os outros trajes encardidos dos imigrantes, tomou frente ao pequeno tumulto. Falou algumas palavras em nome da Coroa e passou a dar a orientação àquela gente.

Explicou que o governador estava à espera deles na ilha. E de lá, todos seriam acomodados, de acordo com o regimento de nove de agosto do ano de mil novecentos e quarenta e sete, em cada locação e onde elas ficavam. Bem como o tratamento, alojamento e rações alimentares. Falou ainda da ajuda de custo, dos animais, utensílios e ferramentas destinados a cada um. E mais: das terras, conforme os editais de alistamento. O porta-voz ressaltou também as preocupações breves como organizações urbanas, ajudas espirituais, a estrutura das companhias de ordenanças, das igrejas e as demais medidas fiscais.

Dito tudo, o rapaz sentiu-se em um novo mundo. Como se tivesse renascido. Com novas leis, regras. Nova casa e família. Como se aquele povo sofrido esperasse ansiosamente para reviver.

Os barcos encostavam um a um no casco da frágil embarcação. Mulheres e crianças desciam primeiro. Choro de fundo. Emoção. Os barcos lotavam. Homens remavam em direção a praia. Rapidamente o navio foi esvaziando. Havia poucos barcos. Era sinal que deviam esperar mais. Com um pé na borda ele avistou os barcos chegando. Não percebia o detalhe. Mas era no mesmo local que antes vira algumas pessoas.

Os barquinhos de madeira voltavam para fazer mais viagens. Ele ficava sempre pra trás. Esperava, não tinha pressa. Nervoso, extasiado pelo momento tão esperado. A praia em Nossa Senhora do Desterro ganhava gente. Chegara a sua vez. Antes de descer, olhou para o navio e por um instante, achou que sentiria saudade dali, apesar de uma viagem difícil e pesada. O barco balançava um pouco. Sentou-se numa madeira na borda dele. Notou que algumas madeiras eram improvisadas como bancos. Um barco de pesca. A cada homem que entrava no barco ele balançava, quase que entrando no ritmo do mar. Olhou para o lado, pôde ver a água. A água, que há tantos dias era sua visão, agora estava ali, ao seu lado e a seu alcance. Ele tocou-a e pela primeira vez, fez um contato direto com aquele lugar. Como um animal que experimentava o território. Não soube definir se era quente ou fria. Balançou os dedos e a fez correr entre eles, parecia ter sido aceito por ela.

Homens começaram a remar. Ele acompanhava tudo atento. Agarrado à sua trouxa, com a mão ainda úmida, o coração acelerava. Não parecia estar indo a direção àquela ilha, parecia que ela se aproximava. Um que remava a ponta dava as ordens. Mas nem era preciso, pois o mar estava calmo, estava do lado deles.

No caminho ele olhava longe, mas não enxergava nada. Os homens ao seu lado cumprimentavam, comemoravam, brandiam pela vitória. A medida em que se aproximavam eles percebia imagens que antes não era possível. Notou pequenas casas na de frente para o mar, uma do lado da outra, pareciam coladas. E a ilha se aproximava. Duas gaivotas atravessaram a frente do tímido barco num vôo rasante, silenciando a todos, como se dessem boas vindas. As pessoas lá na praia ganhavam forma, detalhes. O rapaz pôde ver ao longe outras embarcações, pequenos barcos de pesca. Outros maiores. Alguns trazendo mantimentos para a ilha. A cena era bonita. Então ele olhou pra trás, o navio de novo e mais ao fundo a outra embarcação. E rapidamente voltou a olhar pra frente. Como se este mundo novo agora fosse seu mundo. Estava eufórico.

Viu uma movimentação na praia. Então se lembrou do dia do alistamento, de todo o movimento que havia. A sensação que sentira era semelhante a esta que tomava conta de seu corpo. Estava quase na praia. Em pouco tempo tocaria aquele solo. Então ele pode se dar conta de tudo que vivera até ali. Da decisão que tomara. Da sua vida. Deus. Rezava nesta ora. Sentiu-se tonto. Lembrou-se da família e das plantações. Dos irmãos, das benzeduras. Das festas do Divino. Lembrou de quando era pequeno. Como se todo seu passado borbulhasse em sua alma. Saudades da família.

Não sabia da mudança que faria aquele lugar. Das apostas que a Coroa Portuguesa tinham nele. De tudo que iria mudar e conhecer. Movido pela coragem, amor e esperança. Os lábios dele sorriam. Sua alma também. Estava feliz. Havia deixado tudo pra trás para mudar a sua vida. Para gerar, ali, novas vidas. Filhos, netos e tataranetos. Pensou que nunca mais veria os Açores, que nunca mais teria os mesmos costumes. Mas não. Isso tudo estava impresso em sua alma. Em seu modo de agir, de ver o mundo e respeitá-lo. Passaria tudo isto a esta terra de magia. A estes homens. Transformaria. Atravessou o Atlântico. Sentiu o baque do barco na areia. Arriou as calças de linho. Desceu. A água alegrou seu espírito. Pisou, sentiu a terra, fazia parte dela. Havia chegado.

 

 
 
 
 


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